Londres, 1950. Tudo é glauco, triste, desolador. A excepção é
Vera Drake, mulher de grande coração (tem um coração de ouro, reconhece o marido) que acode aos necessitados do bairro: os doentes, os pobres, os incapacitados e as jovens que se vêem face a uma gravidez indesejada.
Vera Drake leva a todos compreensão e generosidade. Pelo que a sua ausência é bem “visível” no último plano do filme que nos mostra uma família, a família de
Vera Drake, apática, quase estática. À espera… Mike Leigh faz com
Vera Drake um filme à Aki Kaurismaki mas sem o sentido de humor deste: um dramalhão de câmara, não uma tragicomédia. Na segunda metade, quando a polícia bate à porta dos Drake, o mesmo entra no registo Lars von Trier mas também não o de
Ondas de Paixão (a minha suspeita inicial), antes o do falhado
Dancer in the Dark – tal como von Trier vampirizava o rosto de uma Bjork desfigurada, Mike Leigh explora o calvário da sua adorável abortadeira com requintes de malvadez. O filme tem uma expressividade digna do cinema mudo: os rostos de Mike Leigh são de novo invulgares (“freaks”). Só que o que Dreyer transmitia com o rosto da sua Joana D’Arc era imagem pura, não tinha o som (choro, soluços, voz titubeante) que acrescenta realismo e torna tudo mais insuportável. É como se Mike Leigh quisesse despertar em nós uma consciência qualquer, recorrendo à crueldade do grande plano.
Vera Drake que até aí tinha evitado habilmente o programa despenalizador, do tipo “todo o aborto é uma decisão difícil para qualquer mulher”, apresentando uma galeria de vítimas mais sofridas do que indiferentes que faz justiça à complexidade do tema, deita tudo a perder ao querer fazer arte, ao querer narrar a “paixão” de
Vera Drake, sacrificada às mãos da justiça ao som de epifanias corais. O que não se perdoa a Mike Leigh é ter trocado a dignidade da sua personagem pela exposição gratuita do sofrimento dela.