Arquivos . Lugares
quinta-feira, março 30, 2006
Bruxo
"Acho que vamos vamos sair daqui um pouco maltratados", disse eu, decorria a primeira meia-hora da peça Orgia.
quarta-feira, março 29, 2006
terça-feira, março 28, 2006
A vingança serve-se explosiva e com "panache"


V for Vendetta bate praticamente toda a concorrência no que em anos recentes diz respeito à adaptação de “novelas gráficas” ao cinema. Mesmo que iconograficamente hiper-calórico – causador de ligeiro prenúncio de indigestão em certos momentos –, o filme de James McTeigue mostra bravura narrativa e visual dignas do cinema asiático de culto – penso, por exemplo, em Chan-Wook Park ou Kinji Fukasaku. V for Vendetta cruza inúmeras outras referências de que recupero apenas três que me pareceram mais evidentes: Shakespeare pela valorização da(s) palavra(s); Orwell pelo lado da distopia retro-futurista; o cinema grosseiro, garrido, mas nunca desinteressante de Paul Verhoeven. E depois, sempre que V, o homem da máscara, está em cena, é toda uma "panache" de palavras e gestos teatralizados que se solta e que francamente seduz. O fogo do artifício que no filme mais enche as medidas não será tanto a iconoclastia explosiva como a celebração igualmente detonadora da língua inglesa na voz sem rosto de Hugo Weaving. (6.5/10)
Auto-retrato de todos os dias
Espremo a pasta dentífrica a partir do fundo e nunca ao acaso.
[António Sousa Homem, "Os Ricos Andam Tolos - Crónicas de um Reaccionário Minhoto", Asa 2002]
[António Sousa Homem, "Os Ricos Andam Tolos - Crónicas de um Reaccionário Minhoto", Asa 2002]
Não há rapazes maus
Comparar Tsotsi com o brasileiro Cidade de Deus é quase uma heresia. O filme sul-africano é incipiente de processos cinematográficos e a história que conta é cândida como uma obra da Disney. Convenhamos que para retratar a marginalidade nos arrabaldes de Joanesburgo é demasiado curto. (3.5/10)
segunda-feira, março 27, 2006
Apenas o necessário
Pedimos desculpa aos adeptos por esta interrupção. Retomaremos as exibições com mais qualidade quando a qualidade dos adversários o exigir.
sábado, março 25, 2006
Blame it on Richard Thompson
“RT” is Free Reed’s 4-CD plus 5th Bonus CD celebration of the life and music of Richard Thompson. This set has been compiled with unprecedented access to Richard’s own archives and to Thompson collectors worldwide. It features the classic Richard Thompson songs and recordings never heard before and is made up entirely of previously-unreleased and extremely hard-to-find material. This essential purchase includes a superb 160-page biog/discography Book, with a truly unique image archive.
Pobrete mas alegrete. Ou em versão menos popular, arruinado mas consolado.
O corpo de John Wayne
O corpo de John Wayne foi portador de um olhar, um sorriso, uma pose que tinham ao mesmo tempo a evidência de uma encarnação do bem e de uma plena presença masculina («How many times do I gotta tell you, I don't act at all, I re-act»). A celebração desse John Wayne é feita de modo magistral pela escritora americana Joan Didion num texto comovente, intitulado «John Wayne: A Love Song» (1965), incluído no livro Slouching Towards Bethlehem, uma das obras máximas da autora. Didion conta como ficou para sempre à espera que um homem prometesse construir-lhe uma casa «at the bend in the river where the cottonwoods grow» e cita Raoul Walsh com a sintética eloquência que o caracteriza: «Dammit. The son of a bitch looked like a man.» [Alexandre Melo, Actual, Expresso, 25 Março 2006]
sexta-feira, março 24, 2006
É um clássico, pá!

Se é voz corrente na especialidade não facciosa que o Futebol Clube do Porto é a melhor equipa portuguesa, cabe ao Sporting voltar a provar dentro de duas semanas - e nos números finais - que é mais equipa do que o Porto. Concentremo-nos pois em desejar-lhes o maior insucesso para os jogos que faltam - o que implica sacrificar uns programinhas culturais para ficar sentado a olhar a SportTv e a agourar... - e nunca desistir de acreditar no potencial da nossa rapaziada. Se preciso for, isto é, se nos colocarem um micro nos beiços, então é falar para quem estiver à frente que seremos campeões: ver exemplo do presidente demissionário. E o resto (como imagens do braço de Pepe na bola, alegadamente dentro da área) são desculpas de mau ganhador.
quinta-feira, março 23, 2006
Factor casos
Há dias em que um homem só pode ser feliz se o Ricardo marcar todas as grandes penalidades. Ou se tornar a vigorar a decisão por morte súbita. Ou se voltarmos a ser perto de 40 mil em Alvalade na recepção ao Penafiel. E se for sempre assim até ao título.
quarta-feira, março 22, 2006
To be continued

(…) I remember her saying that she would stay the night, but I said no, I would be fine alone.
And I was.
Until the morning. When, only half awake, I tried to think why I was alone in the bed. There was a leaden feeling. It was the same leaden feeling with which I woke on mornings after John and I had fought. Had we had a fight? What about, how had it started, how could we fix it if I could not remember how it started? (…) I see now that my insistence on spending that first night alone was more complicated than it seemed, a primitive instinct. Of course I knew John was dead. (…) I needed to be alone so that he could come back.
This was the beginning of my year of magical thinking. [págs. 31/33]
Pressenti aqui que o livro partia do luto para mais qualquer coisa e que mais qualquer coisa podia ser o grande livro que aqui pressenti.
Joan Didion
Da série O rosto como capa do livro de cada vida (to be continued)
terça-feira, março 21, 2006
Melancolia II
A Transfiguração (1520), de Rafael Sanzio (1483-1520).
Óleo sobre painel 405 x 278 cm. Pinacoteca Apostólica do Vaticano.
Melancolia
Hoje é dia mundial da poesia. Escolho uma palavra, a mais bela de todas. Escolho a música que melhor a canta. Escolho tudo num disco que prova isso mesmo.
segunda-feira, março 20, 2006
Who was the most right-wing man in history?

(...) One of the great errors of political taxonomy is to classify Hitler as rigth-wing. He, and still more is closest colleague, Goebbels, were socialists, and the fact they were nationalists first did not orient them more to the right. There are six indispensable hallmarks of a conservative. First, firm belief in one, beneficient and omnipotent God. Second, absolute morality as the basis of public law. Third, strict limits on the size of the state. Fourth, respect for a multiplicity of traditional power centres. Fifth, restraint and self-restraint in all things. Sixth, search for the right balance between the individual and the traditional units of society. Hitler broke all these rules: he was an atheistic pagan, a moral relativist, a totalitarian, an ultra-centralist, an uninhibited exhibitionist and a colectivist. In many ways Stalin was to the right of him. There is a seventh point. A conservative is not affraid of force, or of using it thoroughly. But always as a last resort. With Hitler it was the first. (...)
Paul Johnson, The Spectator, 25 Fevereiro 2005
Tempo
O Céu Gira é um filme impressionista no dispositivo de observação e nos méritos equivalentes da sua plasticidade. A documentarista Mercedes Álvarez tem olhar de cineasta como o provam alguns belíssimos raccords de som ou imagem. Tudo se passa como no quadro que vemos de início e que mostra dois rapazes olhando para um lago: procurando ver algo que está a surgir ou algo que acabou de desaparecer. Assim é a vida da terriola que Álvarez filma perdida no tempo, quase deserta na sua meia-dúzia de habitantes idosos, visitada pelo presente muito mas muito de vez em quando. O tempo é o único luxo deste filme. O tempo que deixámos de ter e que Mercedes Álvarez nos devolve sem qualquer demagogia. (7/10)
The White Countess
Natasha Richardson e Ralph Fiennes têm distinção e elegância de sobra. Mas A Condessa Russa cedo revela limitações de reprodução pálida e um tanto arrastada dos modelos melodramáticos que o antecederam: de Michael Curtiz a Sydney Pollack. Ainda assim vê-se, com uma pontinha de nostalgia por um romantismo que nunca existiu fora dos livros e dos filmes, ou das nossas próprias cabeças. (5/10)
Gestão milimétrica
Para quem está de fora - do campo olhando o televisor - parece menos bonito, faz aumentar os nervos, mas a gestão realista que Paulo Bento impôs na equipa do Sporting atingiu ontem em Leiria a eficácia total. Ou de como controlar ao detalhe um jogo de maior risco e fazer a gestão do plantel para a partida das Antas. A malta enerva-se, só que depois, a frio, é forçada a reconhecer-lhe o mérito.
sábado, março 18, 2006
A besta humana
The beast in me (Nick Lowe)
The beast in me/ Is caged by frail and fragile bars/ Restless by day/ And by night rants and rages at the stars/ God help the beast in me/ The beast in me/ Has had to learn to live with pain/ And how to shelter from the rain/ And in the twinkling of an eye/ Might have to be restrained/ God help the beast in me/ Sometimes it tries to kid me/ That it's just a teddy bear/ And even somehow manage to vanish in the air/ And that is when I must beware/ Of the beast in me that everybody knows/ They've seen him out dressed in my clothes/ Patently unclear/ It it's New York or New Year/ God help the beast in me/ The beast in me.
Ainda hoje agradeci a descoberta de Johnny Cash, como numa oração.
sexta-feira, março 17, 2006
Acentuar o negativo


quinta-feira, março 16, 2006
Comércio de bairro
Livraria Ler, restaurante Comer, discoteca Música, drogaria Plástico, perfumaria Higiene, café Café, cervejaria Bejeca, Centro Cultural Cultura, Cemitério das Covas, farmácia Fármaco, veterinário Animal, mercearia Legumes, mini-mercado Mercado, sapateiro Tacão, garrafeira Botelha, barbearia Suíças, tabacaria Mortalha, papelaria Resma.
quarta-feira, março 15, 2006
Excesso de publicitação
Terminei de pensar agradecer ao Maradona a publicidade da publicidade da publicidade - embora de duração imprevisível - aqui ao Babugem. Já está! E o regresso d'A Causa Foi Modificada à barra de links também: que no fundo era o que o Maradona queria - já mandá-lo para a Alemanha é outra questão. Nota: uma vez que as provocações do Maradona vão sempre num crescendo em relação à importância do sujeito a quem as dirige, considero lisonja que não mereço vir depois do João Miranda e do Vasco Pulido Valente que andam nisto há muito mais tempo do que eu. Entenda-se, isto de provocar ou de ser provocado.
Zombies
No cinema actual não pode haver género mais revolucionário que o filme de zombies, porque os zombies movem-se como as pessoas idosas e o mundo tem cada vez mais idosos. Conclusão: vamos envelhecer todos e depressa.
terça-feira, março 14, 2006
Leitinho
Juro que ia pedir uma fatia de ananás mas ele atirou com um "leitinho creme, meu amigo?" e eu respondi "é isso mesmo!".
segunda-feira, março 13, 2006
5 segundos de ansiedade
Ao abrir o pacote da Amazon, dei um golpe com o x-acto que levou dois milímetros das últimas páginas e da contracapa abaixo do qual se lia "the humour cuts like a scalpel" (Guardian). De tal forma que corta mesmo antes de pegarmos o livro para ler. Será a vida como ela é?
No meu tempo havia uma coisa muito bonita que era o respeitinho
I was talking with a friend of mine about this the other day: that country life as I knew it might really be a thing of the past and when music people today, performers and fans alike, talk about being 'country', they don't know or even care about the land and the life it sustains and regulates. They're talking more about choices - a way to look, a group to belong to, a kind of music to call their own. Which begs a question: Is there anything behind the symbols of modern 'country', or are the symbols themselves the whole story? Are the hats, the boots, the pickup trucks, and the honky-tonking poses all that's left of a desintegrating culture? Back in Arkansas, a way of life produced a certain kind of music. Does a certain kind of music now produce a way of life? Maybe that's okay. I don't know.
Cash - The Autobiography, páginas 13 e 14
The cat Fagen
Mesmo reconhecendo que o novo Donald Fagen raro vai além da mediania (a bitola a que o homem nos habituou é alta, eu sei...), também é verdade que o disco Morph the Cat tem, quando escutado alto e bom som, duas ou três músicas ao nível do melhor que o músico gravou com e sem os Steely Dan (penso em H Gang, The Great Pagoda of Fun e Security Joan por exemplo) e o resto do disco não entorpece nem nos solos - bem tocados p'ra caraças - que gozam de toda a condescendência para com os músicos de estúdio (os melhores dos melhores!) que Donald Fagen tem o costume de reunir, de tempos muito longos a muito longos tempos, para gozo dele e nosso também. Dentro do género - o groove urbano suportado pelo inimitável baixo eléctrico (!) ou solarengo, sem idade, tal como o jazz - ainda não há quem faça melhor, fazendo correr pequenas bolhas de espumante musical dos pés à cabeça. Welcome back Mr. Fagen! E já agora faça-nos uma visita e traga o H Gang em peso.
Vida negra até ao Título
Tiro o chapéu que não uso ao Carlos Brito que apresentou a melhor equipa que vi jogar este ano em Alvalade. Remendada? Valeu a grande solidariedade demonstrada pelos jogadores do Sporting (cada vez mais unidos; cada vez mais equipa) e o incentivo dos espectadores no estádio que não se cansaram de gritar as alarvidades da turma de Elmano Santos. A carruagem do Metro cheirava consideravelmente pior no trajecto de regresso.
sexta-feira, março 10, 2006
A History of Violence
Terminei de escrever sobre o novo filme de Cronenberg. O texto chama-se "Uma terapia pela violência". Sairá na Atlântico de Abril. O DVD sai na Amazon inglesa a 20 de Março. O filme estreia em Portugal na mesma semana.
quinta-feira, março 09, 2006
The moon is a harsh mistress
Pat Metheny, Charlie Haden, o céu sobre o Missouri. Voltar a casa é afinal possível.
Primeira mão
Um mundo perfeito
Em Espanha existe uma comissão nacional para a racionalização dos horários que tem como função, entre outras coisas, mudar o país. O objectivo é simples e maduro em dois pontos essenciais: acaba-se com a “siesta” e impede-se os espanhóis de jantar a horas tardias, harmonizando os horários do simpático país peninsular com o “resto da Europa” e reafirmando que o desenvolvimento e enriquecimento profissionais não sejam sinónimos de renúncia à vida pessoal e familiar dos funcionários e empregados do sector público, nomeadamente.
Qualquer pessoa munida de bom-senso estará de acordo com o princípio. Em Espanha, que eu saiba, estão todos de acordo: a burocracia governamental, os defensores da globalização, a igreja, as associações de defesa da família e da mulher, bem como os teóricos e exegetas da produtividade. Se é assim tão fácil, porque razão até agora não se fez essa mudança? Porque a sociedade é preguiçosa, dolente, avessa às mudanças, amiga de beber até tarde, de jantar em horas a que os suecos estão a dormir, e está cheia de colesterol, fumo, gorduras excedentárias, bares e discussões tardias sobre futebol. Esta sociedade frívola, desregrada e maculada pelo desrespeito aos ritmos de trabalho normais em Frankfurt ou em Oslo, produziu coisas memoráveis mas está doente. É preciso reformá-la e transformar a vida dos seus membros, geralmente irresponsáveis e a necessitar de disciplina, dieta e horários primaveris.
Pelo contrário, o governo espanhol está cheio de pessoas felizes. A comissão de horários também. São pessoas que acordam a horas, que trabalham em ambientes ecologicamente correctos e onde se instituiu a paridade de género. Almoçam iogurtes dietéticos e não tripas à madrilena ou pratos condenados pelos cardiologistas, fazem ginástica, chegam a casa a horas decentes (digamos ao fim da tarde) e deitam-se cedo no leito conjugal, quando bandos de energúmenos ainda circulam pelos cafés, fumando e contando anedotas, enchendo os seus vasos sanguíneos de substâncias nocivas à saúde, dedicando-se ao adultério e a literaturas que não são nada saudáveis.
O debate sobre os horários em Espanha ameaça, evidentemente, espalhar-se por outros países do sul da Europa, desejosos de imitar os seus concidadãos de Dusseldorf, de Helsínquia ou da renovada Espanha, construída à maneira do retrato sorridente, acrílico, saudável e ligeiramente bem vestido do líder Zapatero. Não por agora, porque somos pessoas desprezíveis e dadas a festejar prazeres grotescos (como conversar até tarde, comer razoavelmente e jogar cartas), mas Portugal há-de entrar na liça. Nessa altura, empresários e autoridades morais, inimigos da licenciosidade, Mães de Bragança, comissões de vigilância familiar, cardiologistas e especialistas em dietética e ciências do emagrecimento, ficarão também mais felizes – o sul da Europa deixará de ser esse fragmento bárbaro no mapa do continente, onde as pessoas se dedicam à produtividade, ao escrupuloso cumprimento de horários, à saúde e à vida em família. A taxa de divórcios diminuirá, certamente, as doenças coronárias recuarão e mesmo os escritores serão regulados por uma comissão que os impedirá de escrever acerca de ambientes soturnos ou sobre temas depressivos ou sexualmente discriminatórios. O sul da Europa viverá como uma espécie de retrato do paraíso na Terra, as lojas fecharão todas ao domingo, as pessoas irão à missa e participarão em associações de vizinhos, terão gémeos sorridentes e férias no campo.
Este retrato existiu no passado. As grandes utopias, de Campanella a Thomas More, de Calvino a Lenine, de Hitler a Pol Pot, tiveram desejos semelhantes. Na república de Calvino puniam quem faltasse às orações e noutras matavam quem atalhasse pela licenciosidade. É um mundo ideal e perfeito. Pessoalmente, não quero viver nele.
Francisco José Viegas
Entretanto publicado no JN.
Em Espanha existe uma comissão nacional para a racionalização dos horários que tem como função, entre outras coisas, mudar o país. O objectivo é simples e maduro em dois pontos essenciais: acaba-se com a “siesta” e impede-se os espanhóis de jantar a horas tardias, harmonizando os horários do simpático país peninsular com o “resto da Europa” e reafirmando que o desenvolvimento e enriquecimento profissionais não sejam sinónimos de renúncia à vida pessoal e familiar dos funcionários e empregados do sector público, nomeadamente.
Qualquer pessoa munida de bom-senso estará de acordo com o princípio. Em Espanha, que eu saiba, estão todos de acordo: a burocracia governamental, os defensores da globalização, a igreja, as associações de defesa da família e da mulher, bem como os teóricos e exegetas da produtividade. Se é assim tão fácil, porque razão até agora não se fez essa mudança? Porque a sociedade é preguiçosa, dolente, avessa às mudanças, amiga de beber até tarde, de jantar em horas a que os suecos estão a dormir, e está cheia de colesterol, fumo, gorduras excedentárias, bares e discussões tardias sobre futebol. Esta sociedade frívola, desregrada e maculada pelo desrespeito aos ritmos de trabalho normais em Frankfurt ou em Oslo, produziu coisas memoráveis mas está doente. É preciso reformá-la e transformar a vida dos seus membros, geralmente irresponsáveis e a necessitar de disciplina, dieta e horários primaveris.
Pelo contrário, o governo espanhol está cheio de pessoas felizes. A comissão de horários também. São pessoas que acordam a horas, que trabalham em ambientes ecologicamente correctos e onde se instituiu a paridade de género. Almoçam iogurtes dietéticos e não tripas à madrilena ou pratos condenados pelos cardiologistas, fazem ginástica, chegam a casa a horas decentes (digamos ao fim da tarde) e deitam-se cedo no leito conjugal, quando bandos de energúmenos ainda circulam pelos cafés, fumando e contando anedotas, enchendo os seus vasos sanguíneos de substâncias nocivas à saúde, dedicando-se ao adultério e a literaturas que não são nada saudáveis.
O debate sobre os horários em Espanha ameaça, evidentemente, espalhar-se por outros países do sul da Europa, desejosos de imitar os seus concidadãos de Dusseldorf, de Helsínquia ou da renovada Espanha, construída à maneira do retrato sorridente, acrílico, saudável e ligeiramente bem vestido do líder Zapatero. Não por agora, porque somos pessoas desprezíveis e dadas a festejar prazeres grotescos (como conversar até tarde, comer razoavelmente e jogar cartas), mas Portugal há-de entrar na liça. Nessa altura, empresários e autoridades morais, inimigos da licenciosidade, Mães de Bragança, comissões de vigilância familiar, cardiologistas e especialistas em dietética e ciências do emagrecimento, ficarão também mais felizes – o sul da Europa deixará de ser esse fragmento bárbaro no mapa do continente, onde as pessoas se dedicam à produtividade, ao escrupuloso cumprimento de horários, à saúde e à vida em família. A taxa de divórcios diminuirá, certamente, as doenças coronárias recuarão e mesmo os escritores serão regulados por uma comissão que os impedirá de escrever acerca de ambientes soturnos ou sobre temas depressivos ou sexualmente discriminatórios. O sul da Europa viverá como uma espécie de retrato do paraíso na Terra, as lojas fecharão todas ao domingo, as pessoas irão à missa e participarão em associações de vizinhos, terão gémeos sorridentes e férias no campo.
Este retrato existiu no passado. As grandes utopias, de Campanella a Thomas More, de Calvino a Lenine, de Hitler a Pol Pot, tiveram desejos semelhantes. Na república de Calvino puniam quem faltasse às orações e noutras matavam quem atalhasse pela licenciosidade. É um mundo ideal e perfeito. Pessoalmente, não quero viver nele.
Francisco José Viegas
Entretanto publicado no JN.
quarta-feira, março 08, 2006
Três novos horizontes (ou quase)
Ursula;
Friedman and Liebezeit;
Steve Harvey;
Anunciados horizontes de conquista. Horizontes de conquista anunciada. Horizonte de conquista triplicado.
Valdés e as piranhas ronaldas
Afinal foi o Barça que amarrou a equipa de Mourinho durante 60 minutos, sem largar, e quando o Chelsea ousou soltar-se, Ronaldinho furou por Terry e Carvalho dentro, decidindo a eliminatória. Foi a vitória do homem bom (Rykard: a imagem dele a confortar Messi diz muito a quem quiser ver) sobre o homem mau (Mourinho: atitude, génio e mau génio). Embora torcesse pelos ingleses, reconheço que o Barcelona jogou com um rigor táctico a 97%. Nem a mínima hipótese deu.
segunda-feira, março 06, 2006
Cash tumular


UNCHAINED (Jude Johnstone)
I have been ungrateful/ And I have been unwise/ Restless from the cradle/ But now I realize/ It's so hard to see the rainbow/ Through glasses dark as these/ Maybe I'll be able/ From down on my knees/ Oh I am weak/ Oh I know I am vain/ Take this weight from me/ Let my spirit be unchained/ Old man swearin' at the sidewalk/ And I am overcome/ Seems that we've both forgotten/ Forgotten to go home/ Have I seen an angel/ Or have I seen a ghost/ Where's that rock of ages/ When you need it most/ Oh I am weak/ Oh I know I am vain/ Take this weight from me/ Let my spirit be unchained.
Muitas das interpretações de Johnny Cash têm um carácter definitivo. Como se a voz de Cash gravasse as palavras cantadas numa pedra tumular que lhes sobreviveria. Também como se Johnny Cash morresse a cada versão e ganhasse ao mesmo tempo a eternidade. Isto é algo que se ouve particularmente nos últimos discos; algo que tem a ver com o poder da religiosidade no cancioneiro de Cash: o elemento que talvez tenha sido opressor na primeira metade da sua vida, revela-se finalmente libertador (ou talvez não, existe ambiguidade na gravidade do "homem de negro"). Mas finalmente libertador no sentido em que Cash não sobreviveu muito tempo - apenas alguns meses - à morte da mulher, June Carter (aquela que representava o sentido último da sua existência). Cash comungava do mundo dos vivos e dos mortos, e sobre a vida e a morte teria um poder raro, misterioso e só dele. E que remete também de um modo que não consigo ainda explicar para o universo de Dead Man, de Jim Jarmusch, sobretudo para algumas imagens marcadas pela serenidade e pela resignação para com a passagem inevitável que a morte representa.